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Londres: um testemunho


Colocado por | Agosto 7, 2013 | Testemunhos de Migração

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Este testemunho foi seleccionado do artigo original do Forumenfermagem.org de 2011 e agora republicado no Emprego Saúde.

Por Ismália de Sousa

Londres (2011)

Estávamos em Setembro de 2009. Depois de três meses de férias, a segunda “corrida às capelinhas” (sendo que a primeira é aquela no dia que se segue à inscrição na Ordem dos Enfermeiros). Naquela altura já mais nada restava a fazer senão esperar, esperar que as mil e uma “fichinhas” preenchidas dessem fruto ou, então, que aquele alguém que conhecemos num determinado hospital fizesse o “jeitinho”. A “cunha” sempre foi a maior agência de recrutamento nacional e o momento já era de crise!

Durante as férias enviei o currículo para uma agência com sede na Finlândia que estava a recrutar enfermeiros para trabalhar em alguns hospitais de Londres. Duas entrevistas por telefone e, depois de uma promessa telefónica de possível emprego, a empresa, curiosamente, nunca mais disse nada! A uma outra agência em Lisboa que estava a recrutar enfermeiros portugueses para o Reino Unido, enviei o currículo em inglês e fui à entrevista. Fui seleccionada pela empresa, mas tudo ficou em águas de bacalhau. Até ao dia de hoje podia continuar à espera…

Num destes dias de férias como desempregada e sem direito a “Novas Oportunidades”, depois de ter interiorizado o quanto estava difícil arranjar um emprego como Enfermeira em Portugal descobri, no Googl,e o site do Serviço Nacional de Saúde Britânico, o NHS, e resolvi inscrever-me. O site permitia algo fantástico: no aconchego do lar, com um simples clic, enviar currículos para os diversos hospitais que estavam a recrutar enfermeiros. Recebi tantos Nãos que lhes perdi a conta, mas fui persistente.

Na primeira vez que visitei Londres, apaixonei-me por esta cidade. Estava no princípio da minha adolescência quando o meu irmão veio para cá viver e, para além dele, sempre houve algo mais que me ligava a esta cidade. Na Faculdade, candidatei-me ao Programa ERASMUS. Fui para Helsínquia, na Finlândia, durante 3 meses e experienciei a cultura nórdica. O facto de ser filha do ERASMUS abriu-me, ainda mais o meu horizonte.

Entretanto, em Setembro ofereceram-me emprego no meu último local de Ensino Clínico. Comecei a pensar seriamente na minha carreira enquanto enfermeira e, irreversivelmente, no salário. Recusei a oferta. Em finais de Setembro, num dos meus dias de desemprego/férias recebo um e-mail do site do NHS a dizer que tinha sido seleccionada para uma entrevista no King’s College Hospital, para um serviço de Medicina. Depois, seguiu-se a do Imperial College Healthcare NHS Trust e a do Royal Bromptom Hospital. No final de Outubro de 2009 de três entrevistas, tinha sido aceite em duas delas. A minha escolha? O Imperial, onde iria abrir um dos 8 serviços de doentes agudos com AVC.

Quando voltei a Portugal tinha um emprego que me oferecia melhores oportunidades de carreira. Tinha um melhor salário e, talvez este meu emprego não me iria deixar com aquele sentimento de estagnação no tempo que eu tinha medo de sentir se trabalhasse em Portugal. A rotina do dia-a-dia, sem mudanças, sem formações em serviço, a subordinação ao Sr. Doutor, o não reconhecimento do enfermeiro como sujeito imprescindível na equipa multidisciplinar, a prestação de cuidados que em nada reflectiam os meus quatro anos de aprendizagem devido ao rácio enfermeiro-doente.

Não acredito que tenha havido um dia, um momento em que tomei uma decisão. Acho que a fui tomando com o desenrolar do tempo. Acho que me fui preparando para uma eventual saída da zona de conforto. Não digo que seja fácil. É difícil! É difícil abdicar daquilo a que já estamos habituados Não é uma decisão que se tome de um dia para o outro. É preciso ter coragem, q.b de loucura e ser-se inteligente o suficiente para se perceber que este não é o nosso país e que, no meio de tantos, há dois caminhos possíveis: ser-se mais um no meio de muitos ou um no meio de muitos!

Posso dizer que não tive uma integração à vida profissional como pensava que ia ter. Turnos sem doentes, atrás de um colega que já trabalha no serviço há mais tempo? Não soube o que era isso! Escolhi um serviço que estava a abrir, disse onde queria os monitores cardíacos, escolhi o local onde iria ser guardada a medicação, como iria ser armazenada, onde iriam ficar as máscaras de Oxigénio, os cateteres de aspiração, e por aí fora. No meu primeiro dia de trabalho, fui deixada à solta, com doentes para cuidar. Lançaram-me aos lobos e esperaram que eu me desenrascasse. Para além de prestar cuidados ainda tinha de estar, ao mesmo tempo, a perceber toda a papelada. Termos técnicos, que não tinha estudado, nomes de medicamentos que eram diferentes, folhas de registo que nunca tinha visto na vida. Numa palavra: o pânico. O meu primeiro doente morreu na véspera de Natal e a partir do dia de Natal, passado a trabalhar, o serviço tornou-se também meu.

Apesar de nunca, em momento algum ter posto a hipótese de regressar a Portugal, como muitos dos meus novos colegas acharam que eu iria fazer, como acredito que muitos seriam capazes de fazer se tivessem na mesma situação que eu, acho que lhes mostrei que sou uma sobrevivente e que não desisto tão facilmente. A minha convicção, o meu desejo em aprender, a minha capacidade de superar os obstáculos, aliás, de dar cabo deles deu frutos. A chefe de equipa com que fiquei na minha primeira semana e que me disse, por outras palavras, que eu não era boa enfermeira, agora diz-me que faço um óptimo trabalho e que agiu como agiu comigo no princípio por achar que era parecida como ela… Whatever! E, quanto às enfermeiras que começaram depois de mim, integrei algumas, eu, a recém-licenciada que veio de Portugal e que, talvez, no meio de todas as minhas outras colegas era a que sabia menos. Hoje é diferente, até porque já me pedem conselhos.

Passou um ano desde a minha mudança de vida, desde que saí da minha zona de conforto e me mudei para Londres. Arrisquei e vim para aqui. Depois de já ter voltado a Portugal, não me arrependo da decisão que tomei. Acho que nunca me vou arrepender. Perguntam muitas vezes se penso em voltar e não sei responder. Nunca sabemos o dia de Amanhã, mas sinto que a minha missão neste país e no serviço onde trabalho ainda não acabou. E, para além disso, há muito de encanto nas terras de Sua Majestade!

 

Fonte:  Forumenfermagem.org de Março de 2011. Ver aqui 

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